Carnaval
2018
Mês passado fez 5 anos que minha avó, a Vó Suly, morreu. Eu nunca fui muito de decorar datas, mas é difícil se desfazer da associação gerada por um telefone de traga os documentos de fulana de uma terça feira de Carnaval.
Lembro que eu tinha te visitado uns dias antes, vó. E você estava lá, completamente introspectada no seu mundo, sem mexer o rosto, as mãos, os pés, ou qualquer parte do seu corpo. Minha tia disse que fazia dias que nem os olhos você mexia, apenas piscava. Para entrar naquela ala do hospital eu precisava vestir uma roupa meio astronauta que acordou atrasado, porque era uma área resguardada a convalescências contagiosas. Nos disseram que você estava com uma bactéria super mega ultra poderosa e, claro, ela poderia tentar atacar outros organismos. Não só o seu, já murcho, minguado, cansado. Ela queria mais e se a gente desse alguma brecha, parece, ela não ia deixar escapar a oportunidade. Então eu coloquei a roupa (uma capa, luvas, máscara) e entrei, pé por pé, desconfortável – nas vestimentas e no coração – para te ver. Eu te amava (e ainda te amo, se isso é possível) tanto que parecia que eu estava num universo paralelo, aquilo não era real, os últimos dois anos não eram reais, você não era mais real. Mas você estava lá, deitada, rija, imóvel, os olhos muito fixos no nada a sua frente, a boca meio aberta com um pouco de baba no canto. Quase etérea, quase um fantasma, uma assombração dócil e frágil. Eu sabia que aquela era a hora de me despedir. Olhando para o passado, agora, não consigo lembrar se alguém me disse que era pra fazer isso, que você estava mesmo morrendo, ou se eu entendi isso de algum outro jeito. Simplesmente não lembro.
Despedidas marcadas são sempre estranhas. Ir até o aeroporto dizer tchau para o intercambista, abanar a mão para o filho universitário dentro do ônibus na rodoviária, dizer adeus para a avó que está morrendo. Como transformar essas circunstâncias em momentos que não sejam incômodos, com um quê de anti natural, de plástico, de encenado? Mas você estava morrendo e eu precisava me despedir. Não tinha outro jeito. Então eu respirei fundo e peguei na sua mão. Você lembra? Eu peguei na sua mão que um dia fora tão maior que a minha e agora era minúscula, ossuda, como se tivesse sendo corcomida por dentro, como se os seus próprios ossos e o seu próprio organismo estivessem te consumindo, chupando sua vida para um buraco negro dentro de você. Eu peguei na sua mão e ao mesmo tempo disse que era eu, Thaiani. Comecei a conversar com você sobre o passado, sobre a minha infância, sobre nossas manhãs de inverno desenhadas de névoa fria das missões e de biscoito doce de polvilho que comíamos enquanto você preparava o chimarrão. E ao mesmo tempo que a minha conversa de uma pessoa só já não parecia mais uma despedida, você chorou.
Você mexeu os seus olhos, uma única vez, e olhou pra mim, pro meu rosto. Só seus olhos mexeram – a esclera mais branca que nunca – e uma lágrima escorreu devagar. Poucas vezes eu vi você chorar, você evitava esse tipo de demonstração de sentimento. Sua vida tinha sido muito dura com trabalho braçal no campo, uma mãe morta logo depois do seu nascimento, filhos que não se amavam, um marido doce mas extremamente machista, um mercadinho de esquina que sobrevivia graças aos bêbados e ao jogo do bicho. Você não chorava. Mas seus olhos, naquela hora, choraram. E olharam. Fazia dias que você não mexia os olhos, minha tia tinha dito. Ela nem mexe mais os olhos. Então, claro, eu chorei. Na verdade eu soltei o choro que eu vinha evitando na sua frente, eu não queria chorar na sua frente, eu queria ser forte igual a você. O resto dos minutos que eu passei lá foram de algumas declarações e períodos de silêncio. Minha avó Suly, minha melhor amiga, minha companheira de manhãs e tardes e noites. Sempre uma diversão estar com você. Sempre um farfalhar de emoções. Era como se a sua presença despertasse em mim um desejo súbito (animador, energizante) de fazer coisas, de dizer coisas, de ser gente.
Três dias depois você morreu.
Na sala da casa dos meus pais, um calor infernal que só o interior do Rio Grande do Sul é capaz de produzir, meu pai atende o celular e faz a expressão que eu já vinha esperando. Era a Geni, a mãe morreu, parece, ligaram pra ela levar os documentos. Levar os documentos. Era a terceira vez que um hospital ligava para alguém da minha família dizendo que era preciso levar os documentos. Não sei se isso é praxe em todos os hospitais mas foi assim que três pessoas que eu amei imensamente (em menor e maior grau) se tornaram um amontoado de ossos, carne fria, água e formaldeído. Na quarta feira de cinzas fizemos uma pequena caravana para um crematório perto de Porto Alegre e, depois de uma modesta cerimônia em que um padre gentil falou algumas palavras chocantemente bonitas, você cabia – inteira – no punho fechado da minha mão. Eu tenho a mão pequena, mas você também era pequena. Tudo certo.
2023
Carnaval; substantivo masculino. período anual de festas profanas, às vésperas da Quaresma.
Na casa dos meus avós nunca ouve comemoração de Carnaval. Nenhuma festa, nenhum sorriso especial, nenhuma fantasia. No máximo, um interesse extremamente desinteressado em acompanhar algumas notícias esparsas sobres os desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro. A Quaresma, entretanto, era bem quista. Não chegava ao ponto de acontecer algum tipo rígido de abstinência, ao menos não quando eu já era viva. Mas idas à missa e as reuniões com a comunidade religiosa eram frequentes nesse período.
Tenho a impressão que você, vó, era mais apegada à ideia de comunidade do que à ideia de Deus. Não que você não acreditasse em Deus. Obviamente você acreditava. Imagino que a ideia de não acreditar em Deus passou raspando, muito de leve, uma única vez na sua vida: quando eu – muito pré adolescente e, por isso, muito saltitante e insolente – te falei que eu não acredito em deus não. Lembro bem da sua reação, extremamente condizente com seu jeito de lidar comigo. Você gargalhou e, no meio da gargalhada, me repreendeu com os olhos e com a fala. Não diz isso, Thaiani. Você sempre discordava de mim achando graça. E é nesse detalhe, provavelmente imperceptível para quem está de fora, que você fez toda a diferença na minha vida: não houve um momento sequer na nossa existência juntas que você não me ouviu com atenção. Qualquer coisa que eu falasse era suficiente para você prestar atenção em mim. Um causo, uma fofoca, um sentimento, uma palavra. Você era sempre ouvidos. E foi vendo você ouvir que eu aprendi a força do diálogo. Foi vendo você me ouvir que eu aprendi que é assim que relações se constroem, que é assim que pessoas constroem laços. E de laços e relações constroem-se indivíduos. Foi com você que eu aprendi a ser gente e não tem coisa mais legal no mundo.
Fico imaginando o que você acharia da vida que eu levo hoje, da pessoa que eu me tornei, dos meus relacionamentos amorosos que já acabaram e já começaram, da minha casa cheia de quadros bem no meio de uma rua extremamente suja em São Paulo. Da minha dificuldade em visitar o Rio Grande do Sul. Da minha saudade inesperada (e pontual) de Guarani das Missões (ou de uma ideia nostálgica de não lugares pertencentes a memórias de Guarani das Missões). Do fato de eu ter me tornado mãe.
Você sempre quis tanto ser bisavó. Quando eu vou ser bisavó, hein Thaiani?. E eu respondia com a cara meio amarrada que da minha parte não era pra criar esperanças. Ih, dona Suly, nem vem. Seu sorriso continuava lá, mas meio frouxo, meio desabado, um pé tocando a borda de uma piscina olímpica de decepção. Na sua cabeça eu era muito rebelde porque eu ia contra uma dimensão de lugares pré estabelecidos para meninas de famílias humildes do interior do estado: eu não queria casar, eu não queria ter filhos, eu queria morar sozinha, eu não aceitava que meninos ou homens mandassem em mim. Você me viu casando uma vez (e, tenho pra mim, não gostou). Você me viu algumas vezes logo depois não só de um homem ter mandado em mim como também depois depois que um homem bateu em mim, apenas você não sabia disso.
Mas você não me viu tendo um filho.
O Francisco pesa 9kg, fica bronzeado fácil, se arrastou pela primeira vez semana passada e gosta muito de tomate. Ele tem os meus olhos, todo mundo diz. Eu também digo. Ele tem o mesmo rosto que eu tinha na idade dele. Ser mãe não me transformou numa pessoa melhor. Ouso dizer que ser mãe nem mesmo me transformou. Eu continuo a mesma: cabeça dura, coração mole, corpo magricelo, olhos grandes. Como os do meu filho. Como os do seu bisneto. Eu tenho ouvido ele, minha vó. Eu tenho ouvido seus grunhidos ainda sem sentido com toda a atenção do mundo. Graças a você eu vou ensiná--lo a ser gente. E vão vir outros carnavais, outras Quaresmas, outras ligações de traga os documentos de fulano, outros olhos parados e outros olhos mexendo. Faz cinco anos que a vida continua, só que sem você. E eu ainda não aprendi a lidar com despedidas marcadas.
A ideia dessa newsletter surgiu porque eu queria voltar a escrever para além da minha agenda e do meu diário, porém em algo menos teórico/acadêmico que meus textos de trabalho filosófico. Estamos aqui, então. Eu e vocês. Reunidos. Agradeço a todos que resolveram me acompanhar nessa empreitada sem grandes pretensões (de qualquer tipo). Nos vemos quinta feira que vem.