Vou abrir o Facebook
Eu esqueci da existência do facebook já vai fazer uns bons quatro ou cinco anos. Esporadicamente, entrentanto, entro lá para ver se a ex chefe bolsonarista da minha mãe ainda posta aquelas montagens horrorosas em que, sei lá, o Bolsonaro está sendo salvo de morrer afogado em uma correnteza muito forte pelas mãos iluminadas de um jesus cristo muito branco – e geralmente muito desconfigurado, pois photoshop não é o forte da direita.
Eu não tenho o aplicativo dessa rede social no meu celular, então sempre preciso abrir o navegador da internet para conseguir acessar o site – o que já é um desestímulo a mais para fazer um esforço que, obviamente, não vai compensar. O caso é que se eu acesso o facebook pelo navegador do celular, não consigo ler as eventuais mensagens que algumas pessoas teimam em deixar no messenger. Então eu preciso abrir meu notebook especialmente para isso. E eu odeio. Eu odeio digitar fa-ce-book na aba do google. Odeio dar o enter sabendo que vou clicar na primeira busca patrocinada que vai aparecer. E eu odeio ficar imaginando que mensagem completamente irrelevante me espera e que me custa esse esforço quase sobre humano. Geralmente as mensagens são de tias (minhas, do meu marido ou do meu filho) desejando feliz natal, feliz aniversário, feliz ano novo. Em casos mais raros, são de estudantes da pós graduação em filosofia me cobrando sobre algum certificado do qual não tenho qualquer responsabilidade. Em casos raríssimos, são de homens querendo iniciar um "diálogo" que possa, eventualmente, levar a algum tipo de interação sexual vazia e insignificante. Porém, nesse sábado, a mensagem que eu recebi por lá era de alguém diferente, de um nicho para além de tias ou alunos insatisfeitos ou homens procurando sexo. Era a mensagem de um ex com quem me relacionei quinze anos atrás.
"Oi Thaiani. Tudo ok? Vi que você começou um novo blog. Desejo-lhe sucesso na iniciativa. O Substack é uma ferramenta bem boa, por isso, não sei se você já conhece. (Esta não é uma mensagem patrocinada) Abraços."
O mesmo português impecável (e insuportável) de quinze anos atrás. É engraçado como tem coisas que nunca mudam e basta um lampejo para que toda uma horda de memórias volte. Talvez você ache simpático alguém que há tanto tempo já saiu da minha vida se interessar pelo que eu tenho a dizer e ainda querer me indicar uma ferramenta para que minha escrita seja facilitada. Gentil, não? Claro, uma atitude gentil. E é assim mesmo: pessoas horríveis também são capazes de atitudes gentis. Sabe o ditado "uma andorinha não faz verão"? Ele costuma ser usado em outros contextos para dizer outras coisas, mas serve aqui também. Aristóteles já vinha pensando nele, em outros termos, logo depois de Platão ser obrigado a tomar uma tacinha de cicuta. É preciso diferenciar ação virtuosa de caráter virtuoso, apesar de caracteres serem "construídos" por ações repetidas na mesma direção. As palavras não são exatamente essas, mas a ideia é relativamente simples: não basta olharmos para uma ação isolada para dizer se alguém é bom ou mau. É preciso um olhar mais amplo para que, de fato, enxerguemos o caráter de uma pessoa. Então vamos expandir um pouco nosso olhar.
Em 2006, quando eu tinha 15 anos, eu conheci um jovem prodígio na área de exatas. Ele era excelente especificamente em matemática. Ganhou prêmios, competições, foi convidado para representar o Brasil em Olimpíadas. Ele era magro, alto, branco e loiro. Certamente, se gostasse de tomar banho com mais frequência e não desprezasse completamente o universo da moda, poderia passar por alguém arrumadinho. Falar em beleza quando nos referimos a adolescentes é algo completamente sem sentido, além de irrelevante: membros desconjuntados, postura de uma nogueira que possui inúmeros anéis de crescimento, rosto pipocado por erupções de um vermelho amarelado que é capaz de dar inveja até nos hematomas de alguém que foi atropelada por um carro hibrido entre uma carreta e um trator¹. Por isso, não falo. Mas sim, ele poderia ser arrumadinho se assim desejasse. Ele nunca desejou.
Nos apaixonamos com aquela paixão que só a adolescência é capaz de organizar: burra, suada, descontraída e extremamente energética. Eu passava pela pressão de ser aprovada em um vestibular federal para que o meu medo terrível de me tornar do comércio – como eram meus pais – não se concretizasse. Junto disso, tinha o desejo de fugir de uma cidade pequena repleta de descendentes de italianos fascistas (os italianos e os descendentes) para algum lugar onde houvesse a oportunidade do meu vizinho simplesmente não se importar em saber quem eu era (você viu que a filha do gerente da loja "não vou citar o nome original" tava caminhando sozinha no campo de futebol?). Ele era dois anos mais velho e já morava na capital do estado, fazia matemática na universidade federal de lá. Passamos um ano nos vendo apenas aos finais de semana. Na época eu achava que estava me relacionando normalmente com alguém, fazendo coisas que jovens fazem. Um ano depois, eu passei no vestibular como eu planejava, e também precisei me mudar para Porto Alegre. Sem dinheiro para alugar um apartamento, eu precisava dividir. Então me ocorreu uma ideia que frequentemente ocorre aos jovens: que tal morar junto com essa pessoa que gosto? Que oportunidade incrível que a vida me deu! A partir dali, tudo foi ficando mais nebuloso, confuso e solitário. E foi assim que começou minha segunda pior crise (forte, longa e também solitária) do transtorno bipolar. Em um ano eu pesava 39kg, comia compulsivamente e depois tomava laxante, ficava 24 horas mordiscando apenas uma maçã dividida em quatro e estudava sem parar. Eu não aguentei a pressão, tranquei a faculdade (eu sabia que ela não ia conseguir dar conta do curso de filosofia, não era para ela) e voltei para a cidade do interior. Voltei a morar com meus pais sem explicar para eles exatamente o porquê daquilo tudo, das minhas desistências, do meu peso que mal me aguentava em pé, da minha cabeça sempre baixa, dos meus olhos sempre fundos, da minha tristeza sem igual. E eles também não perguntaram. Até o dia em que minha mãe me ouviu vomitando no banheiro e descobriu os restos de comida embaixo da minha cama. Então eu fui encaminhada para o CAPS da minha cidade (o Centro de Atenção Psicossocial do SUS). Meu tratamento começou. Um ano depois eu estaria novamente em Porto Alegre, novamente cursando filosofia na UFRGS (para espanto de alguns), novamente dividindo um apartamento para baixar o preço do aluguel. Mas dessa vez eu tinha escolhido melhor meus colegas de casa.
A didatez de relatar todos os abusos que eu sofri naquele relacionamento não parece compensar a exposição. Seria como escrever um roteiro para alguma série de impacto da netflix, extremamente visual e extremamente desnecessário. Vocês são seres imagéticos, então imaginem. Imaginem pessoas invadindo os seus quartos no meio da noite, imagem ações forçadas através de palavras gentis, imaginem um tipo de dependência heterossexual baseada no medo, imaginem um olho muito aberto – imóvel, nada de piscadas – olhando para o teto cortado por luzes que vem e vão, no meio da noite, enquanto você espera uma respiração ofegante (diferente da sua, calma, quase nula) acabar. Imaginaram? Expandiram o olhar? Ótimo.
Depois que eu dei o fora daquele apartamento na avenida Bento Gonçalves, eu só o vi umas três ou quatro vezes, todas contra a minha vontade. Ele me esperando na biblioteca da cidade dos meus pais porque precisava falar comigo depois de ter me mandando imensos emails que eu nunca respondi. Ele cruzando uma rua aleatória de Porto Alegre, me cumprimentando sorrindo acuado e confuso. Ele passando pelo campus onde eu fiz minha graduação, meu mestrado e meu doutorado (sim, em filosofia). Em 2019, logo depois que eu me separei do meu ex marido, fui surpreendida uma madrugada com um email dele, surgido das cinzas, um pássaro vermelho-púrpura que teima em não desaparecer (como são todos os abusadores).
"Oi Thaiani, tudo bem contigo?
Estou me preparando para uma mudança de apartamento - ainda estou nos Estados Unidos; devo voltar ao Brasil ou em agosto ou em dezembro, se minha defesa der certo - e, no afã de me me certificar que poderia me livrar de mais coisas, redescobri as nossas cartas e bilhetes antigos, que me pus a explorar.
Achei que você os escreveu com excelência; os escritos mantiveram sua cor e temperatura até hoje. Muitos não fazem sentido, especialmente devido à ausência de datas e à minha leitura somente superficial a esta hora da madrugada, mas tive certeza que as coisas a que se referem foram reais, ultrarreais.
Embora tenha ficado contente com as lembranças do passado, porque sempre existia aquela dança entre as nossas personalidades, também senti um pouco de embaraço. Julgo que não soube me comportar direito nas situações, que não consegui expressar os meus sentimentos adequadamente, e que o agi com um retardo mental impressionante, para dizer o mínimo. Agora já superei, e faz tempo, mas a memória permanece."
Agora já superei, e faz tempo, mas a memória permanece. Ele já superou (e faz tempo!), mas a memória permanece. Ele já se desculpou a si mesmo, já está em paz com os seus fantasmas, já encontrou algum tipo de cura. Não precisou do meu perdão. Eles raramente precisam do nosso perdão, pois a sociedade ensinou que eles se bastam (com ajuda, claro, dessa sociedade). Os meus fantasmas também não estão mais aqui, mas às vezes eles voltam para me espreitar no meio da madrugada sem sono. Demorou uma década inteira para eu começar a entender que o que tinha acontecido comigo não era um relacionamento normal com alguém, coisas que jovens fazem. Era outra coisa. O mundo é complexo e relacionamentos também o são, mas existem alguns limites muito claros que, quando ultrapassados, significam que algo muito ruim aconteceu. É possível normalizar esses acontecimentos e remodelar as linhas entre o certo e o errado, desenhar essas linhas com algum material grosso mas fluido, como crepe ou cetim, para que elas possam ser reajeitadas sem grandes questionamentos, sem muito barulho, sem que as pessoas percebam. O que aconteceu em 2008 definiu a minha vida que se seguiria em tantos aspectos que seria preciso outro texto para conseguir enumerar. Tudo que eu passei a aceitar como aceitável, violências e não-permissões que se tornaram um modus operandi de lidar com a minha própria existência. Foi difícil quebrar o padrão rememorando o passado, ainda mais um passado tão confuso e que por muito tempo me pareceu muito mais cômico do que abusivo. Não é incomum confundir abuso com pataquada.
A última notícia que eu tive dele, antes disso, foram seus posts declarando voto em Trump em 2016. E então essa newslatter, e então essa nova mensagem através do Facebook. Ele quer me ajudar a escrever com mais eficiência. Ele tem uma ferramenta para me indicar – caso eu ainda não a conheça. Seu gesto gentil pode fazer da minha newsletter uma iniciativa de sucesso, como um blog dos anos 2000. Uma andorinha não faz verão, uma ação não determina um caráter, um pedido de desculpas é irrelevante para quem sabe se perdoar sozinho. Eu admiro o mundo dos homens. Ele é muito simples. E extremamente plástico. Puxa aqui, estica ali, corta lá e pronto: já superei, e faz tempo.
¹. Eu fui atropelada por um carro desses, popularmente conhecidos como carretinha agrícola, quando tinha 10 anos. Em algum outro momento essa história aparecerá por aqui. Ou não. Ainda não decidi.
A newsletter pulou uma semana por questões de resfriado, trabalho e um bebê com dente nascendo. Continuo com o desejo de enviá-la todas as quintas.